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Presente póstumo

                                                          Quando Antônia acordou no sábado, percebeu que estava tonta e confusa. Olhando para os lados, levou três segundos para entender que estava em um lugar muito estranho. Abriu a porta, caminhou pelo corredor, desceu uma grande escada. Parecia um daqueles casarões antigos. Chegou à sala e rumou até a porta principal. Quando a abriu, sentiu suas pernas amolecerem. O cenário era de um filme antigo. Carros pretos circulando pelas ruas, carroças e carruagens disputando espaço com os automóveis e os pedestres. Um caos surreal. Já tinha visto algo parecido... uma foto da avó. Datava de 1920 e fazia parte do acervo familiar.              Ficou parada na porta por algum tempo. Notou que algumas pessoas começaram a lhe observar. Ficaram paradas em frente ao portão da casa que ficava bem próximo à calçada. Fechou a porta por instinto. No hall havia um lindo espelho vitoriano. Contemplou sua imagem, cabelos platinados, boca muito vermelh

Flashback

  Em uma daquelas tardes melancólicas e lânguidas Joana fez um chá e foi para a frente da sua estante da biblioteca. O sol se punha no horizonte e compunha um cenário laranja azulado. A vista do seu apartamento era privilegiada. No horizonte o lago Guaíba emoldurava o pôr do sol mais lindo que ela já vira. Pensou nisso e riu, era uma típica Porto Alegrense.   Apanhou um livro. Sentou-se de frente a esse visual de tirar o fôlego. Contava 128 dias de quarentena. Ao sentar deixou cair uma foto. Quando juntou um outro mundo veio a sua memória. A foto era uma performance imitando a atriz Jennifer Beals, protagonista do filme Flashdance. Sara a havia fotografado nos ensaios do Ballet. Lembrou dos seus dezoito anos. Seus sonhos. Suas metas. E sua maior aventura. Olhou para a foto, seu corte de cabelo repicado ao estilo de Alex, a personagem do filme. O maiô preto elegantemente compondo seu corpo de curvas simétricas típicos de uma bailarina de dezoito anos. Meias grossas e sapatilhas

Tempo perdido

Todos os dias quando acordo Não tenho mais o tempo que passou... Mas tenho muito tempo Temos todo o tempo do mundo... Renato Russo A filosofia se apresenta para o debate, ela chega mais forte do que nunca. Precisamos falar da vida. O momento urge. O cativeiro involuntário nos convida a reflexão, ao confronto de nossas escolhas. Vislumbramos a nossa história na esperança de encontrar algum motivo que justifique a nossa existência. A cabeça não para. Há um bombardeio de informações, estatísticas que apregoam o isolamento social. Fomos convidados a um encontro pessoal e único com a nossa história. Que oportunidade! Quero falar dela. Observo meus grupos de mensagem com preocupação. De um lado um pânico coletivo, do outro uma romantização do momento. Não é romântico. É sério. Mas provavelmente superaremos tudo. Haverá um preço a ser pago, individual e coletivamente. Vai ser preciso união, atenção pelo outro, paciência, tolerância. Precisaremos disso. Ainda não dispomos destes

Legendas para fotos que não fiz (Infância)

                                                                                                                                         Conforto Ingressei no corredor, minha mão estreante segurava a da minha avó, ela a apertava para conter a minha respiração ofegante. Meus passos vagarosos deixavam ouvir o coração palpitando até a chegada da sala de aula. No caminho havia uma porta que se abriu para nós. De lá surgiu a merendeira com uma caneca de leite quente na mão, me ofereceu. Aquele cheiro do leite em contato com o alumínio ficou para sempre. Cheiro de colégio grande. Esperança No Ano Novo, a mãe nos dizia que era para ficarmos olhando para o céu, porque nele ia passar uma carrocinha com o Ano Novo e outra, se despedindo, carregando o Ano Velho. Na grandeza da infância acreditei que vi o velho e o bebê. Até hoje olho para o céu no Ano Novo, na esperança de contemplar e entender o mistério do tempo. Felicidade O segredo da vida eu escutava em forma de canção d

Rotina

Ana acorda, toma café, fotografa o café. Toma banho, se veste, fotografa o look. Hora da selfie, edição de foto, postagem no Insta. Todo dia é igual, à tarde revê as postagens, checa as curtidas e verifica os seguidores. Um dia se pergunta, a vida é isso? Resolveu se encarar, olhou no espelho e não se achou, perdeu-se na rotina de si mesma.

Jim

Jim não conseguiu ser a primeira em nada, resignou-se com as sobras. Sobras familiares, sobras de ser a outra, achava que poderia viver assim até o fim. Um dia a sorte mudou, apareceu Geane que a colocou no primeiro lugar da fila e se encantou do seu desencanto.   Jim não conseguia acreditar, sentiu um misto de medo e felicidade mas   ousou-se amável. No dia marcado subiu ao altar, ele a aguardava ansioso, ela caminhou e pensou: nunca é tarde, nunca é tarde. Jim tinha 65 anos.

Brilho

Sunset era o nome da festa, um brilho, uma vibração, Alanys excitada, queria aquele momento, todo mundo dizia que era demais, agora com 17 enfim iria viver isso. Vestida para matar chegou no local, e por motivos diferentes, arrancou os olhares dos guris e das gurias. Na primeira batida eletrônica sentiu-se livre. Logo em seguida descobriu que ficaria presa nessa liberdade para sempre.